Enviado por Hudson Veras
Há pouco mais de dois anos me despedi de Iweltman Mendes. Sobre uma cama de hospital, um corpo pálido, magro e frio, orquestrava a sinfonia da morte e ensaiava sua saída triunfal da vida para entrar na história. Não havia cor nem cheiro em sua cama. Um fino lençol branco, um soro gotejando paciência em sua veia e um ruído assombroso partindo do seu peito… Nunca tinha visto alguém daquele jeito. Por isso mesmo sua morte me ensinou muita coisa.
Entre as muitas lições que a morte de Iweltman me deu, lembro de uma com bastante frequência: um corpo calado em terra alheia só tem valor politico até ser enterrado e, no máximo, serve de palanque até a missa de sétimo dia. Digo isso porque depois do seu enterro e luto, nunca ouvi ou vi algum politico local lembraf-se de homenageá-lo ou discursar em seu favor. Alguns, poucos, sem sucesso, sugeriram um titulo póstumo de cidadão parnaibano ou o nome de um colégio como forma de agracia-lo. Em vão…
Hoje, mais do que quando morreu, reconheço as marcas de sua vida atravessando a minha e a de muitos colegas. Como professor, amigo, pai, esposo e historiador…. Em todas essas categorias, algum sinal dele se faz presente em mim. De todas, a simplicidade intelectual que transformava em fáceis coisas difíceis é, possivelmente, a qualidade mais ressaltada entre os amigos.
Em História, aprendi desde cedo que a nossa produção narrativa funciona como uma contra-memória. Ao narrar, o historiador contraria a lembrança, a reminiscência, a recordação. Por isso, talvez, eu já tenha declinado outras vezes em escrever algo sobre Iweltman. Meu medo de que a lembrança que tenho dele fosse corrompida pelas palavras de uma narrativa pseudocoesa acabou, durante algum tempo, funcionando como uma barreira subjetiva e afetiva. No fundo, tinha receio de não conseguir.
Hoje, dois anos depois de me despedir de Iweltman, as senhas inebriantes de sua morte reverberam em mim mais fortes do que antes. Continuo sem entender o choro de alguns e a bajulação de outros. No entanto, sua ausência funciona em mim, agora, como uma lembrança de que escolher a morte não é uma saída. A morte não como um dado fisiológico, mas a morte em vida; a morte como um a-sujeitamento em vida; a morte como negação da vida. Alguns vivem quando morrem; alguns morrem sem nunca ter vivido; outros vivem em vida e , mortos, embalam a vida e o coração de muita gente. Iweltman é, em minha opinião, este ultimo. Poucos são assim…
Porque evidenciar essa contradição? Pra lembrar, antes de tudo, que a morte não tem um sentido único e universal. Que é possível dizer e pensar sobre ela várias coisas. Mas, também, pra dizer que aprendi com Iweltman algumas lições de história que servem para entender o significado de sua ausência.
– Com ele aprendi que toda história é promiscua, infiel, que não respeita a logica das coisas, que extrapola a dimensão objetiva dos fatos:
– Aprendi a reconhecer que o lugar de construção do sentido do passado se dá na nossa investida diária sobre os documentos, sobre as falas, sobre um corpo. De que não há nada em si, ou naturalmente bom ou ruim.
– Que um historiador e uma boa história se fazem com palavras, leituras e imaginação. E, também, com uma pitada da (in) sensibilidade de uma prostituta: o passado não pertence a ninguém, não cobra ciúme de quem o usa, nem pode ser controlado.
Com Iweltman aprendi, ainda, que não há tempo ruim; que a leveza da vida está na forma como projetamos mentalmente a nossa existência. Isso, de fato, não aprendi com sua morte. Aprendi em longas conversas e em contatos fortuitos.
Por fim, por que lembrar a morte de Iweltman dois anos depois? Talvez pra reavivar a sua permanência entre nós. Talvez pra dizer que ele está vivo em nós. Quem sabe pra dizer que ele não está mais entre nós. Ou, algo que eu acredito mais, porque precisamos lembrar que nos esquecemos dele a cada ano.