Editorial – A guerra do ódio

Gaza é bombardeada, enquanto os tanques de Israel esperam na fronteira a ordem de invadir – Imagem: Thomas Coex/AFP e Yahya Hassouna/AFP

Por Mino Carta

Netanyahu acredita ter sido escolhido por Deus para liderar o povo eleito e Joe Biden se apressa a confirmar a decisão de Jeová

As figuras expostas na capa desta edição são altamente simbólicas de crenças, convicções e humores equivocados dos retratados. Benjamin Netanyahu não se permite a mais pálida dúvida quanto à condição de povo eleito, concedida pessoalmente por Deus a Israel e à sua missão nazista de cancelar do mapa a raça árabe. A fisionomia hesitante de Joe ­Biden e seu sorriso mortiço são indícios de uma jactância agora obsoleta e, sem perceber a inutilidade do gesto, remete para o Mediterrâneo oriental dois porta-aviões.

Os poderosos barcos de guerra já não assustam, são objetos imponentes de pura decoração ao evocar o imperialismo de outrora, tão agressivo quanto o da União Soviética. Assim era quando a propaganda de Tio Sam pretendia a deflagração do embate entre o Bem e o Mal. Netanyahu agora ecoa aquela retórica ao falar da refrega entre Luz e Sombra, em um penoso ensaio evocativo. Já o presidente dos Estados Unidos permite-se o rompante: “Afinal, somos a maior potência do mundo faz muito tempo”. Só falta vestir a fantasia de Tio Sam, de cartola e tudo mais. Não deixa de haver um toque ridículo neste enredo atual.

Mauro Vieira: chanceler equidistante – Imagem: Gustavo Magalhães/MRE

Quando Biden, protegido pela sombra maciça do touro de bronze de Wall Street, definiu como terrorista o ataque do ­Hamas e apoiou incondicionalmente a reação de Tel-Aviv, cometeu, de fato, uma declaração de guerra, em contraposição, diga-se, à sábia decisão da diplomacia brasileira. Chamado pelo Conselho de Segurança da ONU a exercer o papel de analista da situação, o Brasil não hesitou ao assumir uma posição capaz de entender a verdade de um conflito precipitado na origem pelas decisões dos grandes da Terra, quando da queda do Império Otomano.

A região foi retalhada ao talante das conveniências dos envolvidos na divisão e não das justas demandas dos povos locais. Impecável a definição emanada pelo governo de Lula, a contar com as corretas observações do conselheiro especial Celso Amorim, antigo companheiro do presidente e do acima assinado, colhidas não por acaso pelo celular da fidelíssima secretária Cláudia, na véspera da primeira prisão do presidente, precipitada pela então chamada República de Curitiba, encabeçada pelas torpes personagens de Sergio Moro e Deltan Dallagnol.

Ao ponderar a respeito da situação, o Brasil repeliu a definição como terrorista do ataque do Hamas, legítimo representante do povo humilhado em Gaza. Estranhamente, a imprensa brasileira discrepou da posição definida pelo governo. Os nossos pseudojornalistas, dos âncoras dos programas de televisão e de rádio aos editorialistas no papel impresso, foram unânimes no apoio à fala de Biden. E ao longo do tempo, impávidos, continuaram a denunciar o terrorismo do Hamas. A discrepância não é novidade, pelo contrário, vem de longe, como se as falsas coberturas fossem emanadas diretamente da Casa Branca.

Na fronteira, bombas e tanques – Imagem: Jalaa Marey/AFP

Enquanto as forças de Netanyahu perfilavam-se na fronteira de Gaza, amoitadas à espera da invasão, o balanço das vítimas da guerra já passava de 5 mil mortos, 15 mil feridos, sem contar 1,5 mil combatentes do Hamas abatidos, além da destruição em larga parte do território da Faixa, diante do Mediterrâneo. Fardado e armado até os dentes, o povo eleito aguarda a hora do ataque decisivo, com o apoio irrestrito de Tio Sam. Muito se alude à necessidade de um apoio humanitário destinado ao povo de Gaza, qual fosse um lance da generosidade ianque a produzir a encenação de uma visita apressada do chanceler de Washington a países árabes, incluídos no cardápio do faz de conta.

Humberto Eco recomendava nas ­suas brilhantes colunas do semanário L’Espresso a leitura de um livro intitulado Iluminados e Carismáticos, de Ronald Knox, a contar a história que se seguiu à Crucificação, dominada pelos “fanáticos do Apocalipse”, até a queda de Saulo a caminho de Damasco, para tornar-se o São Paulo líder da religião católica e de sua Igreja. O Império Romano perseguiu os judeus cristãos. Foi o tempo das catacumbas, labirintos subterrâneos em que os judeus se escondiam quando o primeiro papa, Pedro I, morreu crucificado de cabeça para baixo.

Gaza condenada à destruição, à escuridão e à fome – Imagem: Mahmud Hams/AFP

A história dá suas voltas e o povo eleito foi alvo de violências e perseguições. Se Roma tornou-se a capital da religião católica, a Terra Santa ficou onde sempre esteve. Ocorreu que o imperador romano Constantino tornou religião de Estado o Catolicismo e, desde aquele momento, surgiu o Vaticano. Papa Francisco conhece este entrecho como ninguém e acaba de fazer de sua constatação um aviso bastante claro: “O mundo está desmoronando”.

A frase poderia figurar com destaque no livro de Ronald Knox para vaticinar a aproximação do Apocalipse. Há quem já ouça o tropel dos quatro cavaleiros fatídicos, a representarem a guerra, o fogo, a fome e a pestilência. E o pontífice nos coloca de prontidão.

Publicado na edição n° 1282 de CartaCapital, em 25 de outubro de 2023.

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