Para ler umas dez vezes

Por Gustavo Conde

A história é mesmo ingrata. Depois de todo o trabalho das elites em criminalizar, desumanizar e barbarizar Lula, o ex-presidente reaparece com força política descomunal que atordoa a tudo e a todos.

De brocha na mão, o nosso “jornalismo profissional”, desidratado intelectual e cognitivamente, segue fingindo que nada tem a ver com o esfarelamento institucional do país. Os institutos de pesquisa lhes esfolam o torso, estampando uma vantagem eleitoral jamais vista para a esquerda brasileira – seguida da miséria proposicional da “terceira via”, a embalagem vagabunda de seus candidatos de estimação e aluguel.

Sergio Moro é um farrapo humano. Um zumbi perambulando sem rumo pelo cemitério hostil dos editoriais conservadores e pela aridez dos perfis abandonados no Twitter. Uma espécie de piada-pronta ambulante incapaz de comentar todo e qualquer assunto levemente conectado aos problemas reais do Brasil. Um fenômeno, um relato de caso, um objeto exótico.

Ciro Gomes, um poço de ressentimento associado a um gigantesco complexo de inferioridade travestido de violência retórica, agoniza em sua ópera negacionista particular. Mais inviável que Ciro, só João Doria, aquele que cativou para si a repulsa generalizada e permanente do eleitor e dos colegas ‘velha-guarda’ de partido – sob o signo da deslealdade canina.

Quem sobra? A criatura indigesta, aquela que ainda municia a libido retorcida dos anti-lulistas mais histéricos. Já é possível ver, inclusive, o tabloide Estadinho de S. Paulo iniciar sua cruzada em prol da “decisão difícil”.

Os tempos ainda são árduos, mas para quem tem senso de humor, o cenário de vingança poética involuntária viceja no horizonte como o canto da graúna.

A besta, o verme, a pústula, o coisa-ruim – seja lá o nome que se queira dar ao inominável -, galopa firme em seus 20% de “morte” (eleitores que desejam a própria morte). Tal pulsão social revestida de pendores suicidas, possivelmente, faria Durkheim repensar e reescrever seu ensaio sobre o suicídio.

O cenário, portanto, é o pior possível para o naziliberalismo encravado em nossas elites financeiras sufocadas pela branquitude. Ele potencializa o papel de Lula na fundação de um país de verdade, não o arremedo golpista inaugurado pelo escravismo estrutural.

O desafio é combater a baixa autoestima de alguns setores progressistas que ainda insistem em temer pelo pior.

Golpe de estado, golpe jurídico, golpe parlamentar, golpe militar, golpe dentro do golpe, adiamento das eleições, capitólio brasileiro, 31 de março, 7 de setembro, depoimento de Adélio, novo atentado forjado, facada 2 – a vingança, morte, fuga, queda de avião, urnas eletrônicas comprometidas, vazamento de conversa entre Lula e Dilma, sequestradores de Abílio Diniz com a camiseta do PT, edição de debate, lawfare, plano real, emenda da reeleição, mudança de calendário eleitoral, GLO etc… Nada disso me parece mais factível tal é o nível de cansaço e das previsões já realizadas baseadas em traumas recentes.

Como diria um lógico, tudo pode acontecer, inclusive nada. Esse nada é o grande xis da questão. Porque superado Bolsonaro, os brasileiros teremos de sair de nossa zona de conforto para assumir em definitivo as decisões sobre o presente e o futuro do país. Isso exige que assumamos a maioridade no quesito soberania. Exige que não mais nos intimidemos com o que quer que seja: Globo, Folha, Fiesp, fake news, EUA, milícias e o escambau.

É hora de dizer: o país é nosso.

Essa é a engenharia que Lula vai estabelecendo neste preciso momento, aglutinando todas as forças democráticas do país em torno de um projeto claro e consistente – em alguma medida já testado e aprovado.

Não está em jogo apenas o próximo mandato presidencial, mas os próximos 50 anos da democracia brasileira.

Não há porque não admitir que esta geração de brasileiros machucada e traumatizada com tantos golpes, tenha resistido bravamente a esse tenebroso período e tenha, através de suas previsões catastróficas (e, num dado momento, factíveis e realistas), esvaziado todo o planejamento golpista reincidente, sempre pronto para atacar e enlamear processos eleitorais.

Não. Dessa vez, o processo histórico se dá de maneira diferente.

Lula aponta como o estruturador de um Brasil que jamais foi sequer pensado, com alternância real de poder e com debate público calcado em projetos minimamente elaborados.

Não há, no horizonte de Lula, qualquer sentimento de vingança, de hegemonia ou de perpetuação. Há um recado claro para a sociedade: cuidemos deste país juntos, para que jamais tenhamos de voltar às trevas de um governo que humilha diariamente todos os brasileiros.

Eis o irrefreável processo histórico que reage à irresponsabilidade torturante de nossas elites golpistas: enquanto Bolsonaro retorna ao esgoto de onde emergiu, Lula desponta como o maior e mais decisivo líder internacional de todos os tempos, da prisão para a presidência, da condenação para a consagração, da execração para a alta respeitabilidade interna e externa – em tempos que o mundo acusa um déficit dramático de lideranças internacionais.

Isso resolve nossas vidas?

Não. Na verdade, tudo está apenas começando.

Gustavo Conde é linguista

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